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5 de junho de 2014

Traição , autoengano e alivio

O Senhor Deus disse à serpente: «Por teres feito isto, serás maldita entre todos os animais domésticos e entre os animais selvagens. Rastejarás sobre o teu ventre, alimentar-te-ás de terra todos os dias da tua vida». (Génesis 3, 14)

Desde a Antiguidade a serpente tem sido símbolo do mal, da traição e do diabo por ter induzido a Adão e Eva a comer do fruto proibido (fruto do conhecimento) no paraíso. 



Há um tema que muito me intriga há anos. Como médico muito pensei nele e como psicanalista ainda mais. Sou apresentado a ele diariamente e posso dizer que nada ou pouco sei ou entendo sobre a questão.

Eu comecei observando desde muito jovem que alguns homens tinham outras mulheres que não as suas esposas. Ouvia daqui e dali, na rua, em casa, mas sempre havia um mistério e um ar de tragédia, um segredo. Foi muito depois que ouvi que algumas mulheres “traiam” seus maridos. Essas, dessa época, eu conhecia pessoalmente porque eram mães de amiguinhos meus. Não sabia se era verdade e não sabia como era possível, afinal mãe não trai. Sobre os homens eu não achava boa noticia também, mas os conhecia menos, mas me decepcionavam também. Sabia que era proibido, errado, perigoso e que eu estava em contato com algo completamente não oficial. Era uma transgressão trair e outra ouvir e saber. Seriam atos que nasceram da lascívia, do desejo, da vingança, da tristeza, da sacanagem, da maldade? Sei lá, nunca soube a resposta para essas perguntas. Muito tempo se passou desta época, me formei em medicina e comecei meu estagio em psiquiatria, passei por vários hospitais públicos e privados, atendi em clinica psiquiátrica em consultório privado e fiz uma longa formação em psicanálise com o que basicamente trabalho nos dias de hoje.

Posso dizer que já ouvi muito sobre relações extraconjugais. São muitas maneiras e dinâmicas diferentes entre si mas que tem em comum um cônjuge julgar necessário ter relações (sexuais?) com outras pessoas. A amplitude dos fatores envolvidos tornaria impossível uma escrita breve como pretendo que essa seja. Por querer ser breve vou focar num fato que chama muito atenção.  Porque há tanta negação em torno disso? Porque as mulheres ficam nesses relacionamentos fazendo de conta que nada esta acontecendo? Os homens geralmente não ficam quando descobrem, mas muitos também ficam. Moralismo? Eu tentarei deixar aqui esse fator de lado porque apesar dele estar presente nas relações humanas o tempo todo porque o julgamento moral é profundamente empobrecedor e obscurecedor dos fatos. Confunde e simplifica demais.

Não foram poucas as vezes que ouvi a explicação que as mulheres que não trabalham não podem se separar. Nem sempre isso me caiu bem, mas de um tempo para cá passei a aceitar essa explicação e todas as outras. Não as tomo como necessárias verdades, mas como necessárias mentiras (não morais).

Recentemente a esposa do atual presidente francês François Hollande foi internada depois de saber pelos jornais que o marido tinha um caso com uma jovem atriz. Dizem que ela sabia do caso, mas que não queria que os outros (as) soubessem. Eu acredito. Um dos motivos que a mulher não larga o seu doce traidor é não perder tal propriedade (o pênis?) para outra mulher, afinal isso fica sentido como uma derrota. Compreensível, ainda que longe das exigências do que poderíamos considerar verdadeiro.  Afinal, como dizia Melanie Klein, fantasias são somente fantasias, mas seus resultados são reais.

Os anos de consultório e vida fora dele me mostram que a maneira como as pessoas elaboram suas insatisfações são variadas, mais ou menos adequadas a si mesmo e ao grupo e também variáveis nos seus níveis de consciência. Muita gente sequer percebe a sua insatisfação, percebem a demanda de prazer e isso é bem diferente e mais superficial.

Voltando a pergunta. Porque tantas mulheres ficam com seus “companheiros” infiéis  ou senão infiéis  ao menos maltratadores ou mentirosões?

Já soube de muitas amigas que perderam a amizade de suas amigas ao contar para elas sobre terem testemunhado o marido com outras. Mata-se o mensageiro da má noticia?


Eu insisto que só estou usando essa situação da mulher não por acha-la especialmente negadora, mas porque desde cedo foi como essa questão me chamou atenção. Homens e mulheres fora de situações de casamento, e namoro fazem a mesma coisa em suas vidas profissionais e sociais.
O artista catalão Josep Maria Subirachs As vezes quero pensar que a tal traição não existe, ou não existe com esse nome ou o sentido não seria esse. Essa "traição" faria parte de uma certa auto regulação de alguns relacionamentos e os ajuda a se manter. Sobre isso se dizia talvez ainda se diga que "as prostitutas mantem  os casamentos". Da onde sairia essa máxima senão dessa hipótese auto reguladora. 

Agora um segredo. Descobri que há um batalhão de mulheres que perdem o interesse no sexo e que isso acontece por centenas de razoes que vão desde o mais justo cansaço até o simples desinteresse que quando não criticado ou transformado em acusação ficaria como um simples, de fato, desinteresse. O problema é "faltou combinar com os russos". Esse desinteresse muitas vezes frustra o companheiro que ,se sentindo um mendigo de sexo se emburra, se infantiliza e piora muito para o casal a situação. Via de regra a mulher se ressente e o homem se magoa. Alguns desses homens se sentem autorizados a buscar alternativas. Estariam eles ao se cuidar dessa forma traindo, enganando a si ou mais alguém? Seriam estas as mulheres que "sabendo" disso sem saber "não" se incomodam? Eu não diria que sim porque muitas se incomodariam muito e diriam que o seu desinteresse não resulta de uma culpa só sua ou que o desinteresse mesmo sendo por auto-estima baixa em relação ao seu corpo ou alguma outra coisa só piora com essa acao do companheiro. Ficamos rapidamente sem saída como podem ver.

Interrompo por aqui para que possamos refletir um pouco. Ia esquecendo a parte do alivio. Seria um alivio se houvesse um pouco mais de esclarecimento sobre isso em pleno século XXI. Menos julgamentos, menos criticas, mais liberdade. Concordam?




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